O Silvio Santos responde ou não responde?
Sim, é a segunda news do dia, sinta-se completamente à vontade para ignorar.
Sei, sei mesmo, as Newsletters sobrecarregam seu e-mail, você se sente sufocado e exausto com isso. Eu sei. Peço desculpas. Deve até ser contra as regras. Um moço de terno virá aqui em casa amanhã para me entregar uma advertência por escrito do Substack me achincalhando. Estou preparada.
*
Sim, sei que newsletters não são diarinhos (olha, eu produzo um diarinho, peça e eu boto você lá, ele é tudo, menos diário).
*
Acontece que estou num dilema, uma encruzilhada de montagem de texto e preciso reclamar em voz alta. Como não há ninguém por perto ou ao alcance dum áudio resmungão, reclamo aqui. Me debato aqui e, aqui, busco respostas.
*
Tudo começa, lieber doktor Freud, com o fato de eu ter sido criada pelo Exército do Povo, ou o mais próximo disso que havia no Campo Belo, nos anos 1970: a casa da minha mãe. Fui criada para não sofrer influência dos grandes símbolos nefastos do capitalismo: Silvio Santos e Pato Donald.
Gibis da Disney não entravam lá em casa (mas os da Luluzinha e sua mãe careta e sua família careta, sim — jamais questione as motivações do Exército do Povo, a minha pobre mãe estava mesmo fazendo o que podia).
Acontece que o Grande Satã da Opressão ao Proletariado é tredo e aleivoso. Ele sempre dá um jeito de alcançar os corações e mentes impressionáveis.
*
Ainda que eu não tenha lido Pato Donald quando pequena e muito menos crescido com o Silvio Santos na tela da tevê, aos vinte e poucos fui trabalhar num produtora de comerciais. Trabalhávamos aos domingos — aos sábados, de noite, de madrugada, quem já trabalhou num produtora entende do que falo, trabalhávamos vinte e quatro horas por dia.
Aos domingos, meus colegas ligavam a tevê e viam Silvio Santos o dia todo. Simples assim. Eu tinha vinte e poucos anos, repito, e esperava que a qualquer momento a minha mãe fosse entrar pela porta, tirar a tevê da tomada e me olhar com aquela cara de Jura, Fabia?.
Era tarde demais para mim. Anos antes, eu tinha constatado, ao namorar um menino louco pelos gibis do Tio Patinhas, que não achava graça na família do Mickey. No meu tempo de produtora, entendi que não podia mais ser alcançada pelos encantos do Silvio Santos.
A não ser.
*
A não ser por um jargão dele que me fascinava.
*
Àquela altura da vida, por muitos motivos que não vêm mesmo ao caso, eu também tinha aprendido a não responder, a não reagir. Seriam necessárias três décadas para que eu aprendesse a reagir e, também, para que eu aprendesse a me arrepender por reagir.
*
Quando as colegas de auditório estavam barulhentas demais, agitadas demais, Silvio Santos lançava mão de um recurso sensacional. Ele gritava uma ou duas vezes O Silvio Santos fala ou não fala? As moças e senhoras imediatamente respondiam Fala!, todo mundo se acalmava e o velho seguia fazendo o que tinha de fazer.
*
Esse eco me acompanha desde aquele tempo. Sempre que é esperada uma resposta de mim, O Silvio Santos fala ou não fala?
*
Evidentemente não estou aqui botando a culpa no velho. Tenho idade suficiente para saber que cada uma das minhas trapalhadas é de minha exclusiva responsabilidade, assim como, e isso é especialmente doloroso de admitir, as minhas expectativas. O que espero do outro é problema meu, assim como o que o outro realmente não sabe, ou finge não saber, é problema dele.
O pai duma, há muito perdida, querida amiga, dizia Eu cá minhas culpas e a comadi com as dela.
*
Condenada por ter cão, condenada por não ter. Se falo, falo demais. Se não falo, me odeio por não ter falado. Aos cinquenta e três anos tenho zero esperança de encontrar alguma paz.
*
Para um escritor esse fala ou não fala é mortal. Para um escritor, falar ou não falar, explicar ou não, defender uma causa ou não é assunto de todo dia.
*
De qualquer maneira, cada vez que a situação exige de mim que eu escolha falar, escolha não falar, entram em conflito a menina calada do Exército do Povo e a aprendiz de Silvio Santos que, ah, adoraria pedir que o outro cale a boca prela dizer umas verdades. As minhas, claro.
O Silvio Santos fala ou não fala?
*
Tou nesse ponto, meu amigo, minha pobre vítima dessa newsletter que deveria seguir os ensinamentos dos soldadinhos vermelhos e ir dormir calada.
*
Minha protagonista segue muda, acuada, querendo muito falar, querendo sumir e sabendo que qualquer movimento dela, qualquer não movimento dela, mais uma vez a condenará.
Reescrevi a cena algumas vezes. Ficou uma pior do que a outra.
Mas você nem se atreva a não falar! Onde é que nós estamos? A que ponto que chegamos?
Pensa bem:
Tem tanta gente que não tem o que falar e fala;
Tanta gente que não devia falar e fala sem parar;
Que se você, que tem tanto o que falar
Que fala tão belamente
E tão pertinente e tal e tudinho
Pois então:
O que há é que se você falar mais, Talvez abafe (um pouquinho que seja)
Aqueles uns que nem deviam falar e falam tanto.
Pronto!
Precisava ler isso hoje.