M., meu rabino no mundo da escrita, e eu, estamos há dias debatendo acerca da escrita.
Me mandaron una carta
por el correo temprano
y en esa carta me dicen
que cayó preso mi hermano
y sin lástima con grillos
por la calle lo arrastraron, si
Como começar, como manter, como terminar, como impedir que se apague a chama neste casamento tão delicado entre o que desejamos dizer e o que dizemos de fato a cada dia, parágrafo, louça por guardar, lembranças embaraçosas, troca de lençol, uso engraçado de advérbio, exame repetido, meia perdida na secadora, pontuação hesitante, copo-medida de requeijão, indicações literárias arrogantes&equivocadas, gesto de amor desperdiçado, compra dum novo dicionário, folhas recolhidas de cima da churrasqueira, títulos ruins para livros tão bons, crianças no acampamento dos lobinhos, barba feita na navalha, descrições com adjetivos de menos.
La carta dice el motivo
que ha cometido Roberto
haber apoyado el paro
que ya se había resuelto
si acaso esto es un motivo
presa también voy sargento, si
Discuto com M. meu método de estruturar cada escrito, por menor e mais tolo, ele traça paralelos com o método dalguém, reclamo que não sei no que estava pensando quando me meti nessa roubada, M. suspira e teme que ninguém leia o que ele tão cuidadosamente ergueu, mando a real: ninguém vai ler, rimos, lavamos, enxugamos, voltamos para o nosso trem-trem metafísico de sempre — antes mesmo do WhatsApp já praticávamos esse desporto no MSN, DM, seja lá que gerenciadores de mensagem usamos há vinte e tantos anos, M. e eu.
Yo que me encuentro tan lejos
esperando una noticia
me viene a decir la carta
que en mi patria no hay justicia
los hambrientos piden pan
plomo les da la milicia, si
Na semana última, as meninas de férias no Brasil, M. com a cabeça quente (se você é um adulto e vive em 2024, você está com a cabeça quente), resmungamos um bocado acerca do processo da natureza da besta e de quem resmunga acerca do processo da natureza da besta e depois da última conversa fiquei pensando num esquema que discutimos de produção, não produção, abandono e a velha e boa vontade-de-morrê.
Então me dei conta de novo dalgo que vive me salvando e, amém, salvando quem consigo alcançar — nós, escritores em busca, não dum mote ou dum enredo, mas dum começo.
Uma carta.
De esta manera pomposa
quieren conservar su asiento
los de abanicos y de frac
sin tener merecimiento
van y vienen de la iglesia
y olvidan los mandamientos, si
Não existe autor meu que, nalgum momento, não tenha me ouvido dizer: escreva uma carta. Se para ele mesmo, se para personagem projetada, se para o amor-impossível, não importa, escreva uma carta para alguém — seu irmão, a professora de redação da 6ª série (minha se chamava Neide e era uma santa), para seu ex amor, para seu futuro amor: ninguém a lerá, de qualquer maneira, a não ser eu, sua preparadora — e explique sua história, sua ideia, seu mote, as personagens, seus motivos ou não motivos.
Explane, com palavras redondas e parágrafos gentis, o que o consome, assola, instiga, embala. Desenhe seu processo. Lance dúvidas para o nada. Abra o peito, as veias, a voz — sangre um pouco dalgum jeito. Reclame das musas raivosas, do gelo tão fino, do preço do vinho.
Habrase visto insolencia
barbárie y alevosía
de presentar el trabuco
y matar a sangre fría
a quien defensa no tiene
con las dos manos vacía, si
Uma carta nos ajuda encontrar um rumo, restabelecer as prioridades e firmar o corpo na sela, como me diz a querida Simone.
Uma carta nos estimula a olhar — em volta, para o outro lado, para dentro — e entender onde estamos, onde não estamos e, ah, sim, com quem estamos.
La carta que he recibido
me pide contestación
Yo pido que se propague
por toda la población
que el león es un sanguinario
en toda generación, si
Uma carta nos apavora e enraivece e magoa a ponto de nos fazer produzir outra carta — como poesia, como canção — que nos faz externar o ódio que sentimos quando, a um oceano de distância, somos informados do encarceramento de nosso irmão, do tanto que ele apanhou e ainda vai apanhar, da incerteza acerca de sua vida, de sua morte.
Por suerte tengo guitarra
Para llorar mi dolor
También tengo nueve hermanos
Fuera del que se engrilló
Los nueve son comunistas
Con el favor de mi Dios, si
Escreva uma carta. Chame o León de Tarapacá de sanguinário, declare amores estranhos, organize os quefazeres dos próximos capítulos, encontre algum consolo enquanto vaga por ruas que não são suas, nomeie personagens que não devem durar nem meia dúzia de parágrafos.
Escreva uma carta por você e pela história que virá depois dela.
Domingo, Fal? Domingo.
Opa, comecei a escrever justamente pelas cartas. Adolescendo e conversando com a parentada e os amigos. Eu estudava no interior de São Paulo (Lins), depois fui para o Rio de Janeiro. Naquele tempo, não havia meio econômico de nos comunicarmos. Fiz amigos epistolares. Briguei com meu tio por carta. Fazia questão de manter minha mãe informada do que eu andava fazendo (em parte). Mantive correspondência com meu tio caçula, que esteve preso... Creio que também namorei. Não me lembro, porém, disso.
Voltarei a escrever cartas. De algum modo. Para recomeçar (eu, meus personagens, meus homônimos).
Valeu, Fal!
nem me lembro da última vez em que escrevi uma carta. taí uma boa ideia…