Ela era uma menina grande. Uma menina grande que ia para a escola das meninas grandes. Uma menina grande que ia para a escola das meninas grandes de mochila (as mochilas dos anos 1970 eram uns retângulos de papelão duro, com dois fechos na frente). A menina tinha um estojo de madeira cuja tampa corria. Tinha uma cartilha, a cartilha Caminho Suave. Tinha também uma lancheira de menina grande, retangular, de lata, da Turma da Mônica.
Ela estava pronta. Nada ali poderia sair errado. Ela conhecia as letras. Conhecia os números. Identificava as placas que diziam Devagar e Pare nas ruas, e Puxe e Empurre, lá na Sears.
Ela era uma menina grande, na escola das meninas grandes, com mochila, estojo, lancheira, usando Conga cor-de-vinho e maria-chiquinha, que vivia numa casa com muitos livros.
Entusiasmados, todos os adultos da vida da menina diziam que ela iria para a escola para aprender a ler e escrever. Essa era a principal missão dela. Dava para sentir pela animação dos adultos que aquele era o grande momento da vida. Aprender a ler e escrever.
Bem, ela estava pronta. Nem um fuzileiro naval pré-Guantánamo estava tão preparado. Com laços especiais estilo orelhas de coelho no cadarço da Conga cor-de-vinho ela partiu rumo ao pré-primário, às colegas meninas grandes e ao seu brilhante futuro cheio de letras.
Às vésperas da filha virar uma menina-grande-de-mochila-no-pré-primário, a mãe a instalou em um quarto novo com paredes recobertas de tecido cor-de-rosa pálido, flores cor-de-rosa e azuis, um quarto todo decorado pela mãe, ex-normalista, ex-guerrilheira-e-ex-aluna-das-freiras, munida de espátula e cola branca. A mesma ex-noviça fez a colcha (nos anos 1970 não existia edredom) e as almofadas. Tudo combinava no quarto novo daquela menina tão grande, que ia aprender a ler, que ia aprender a escrever.
A menina precisava dum lugar para fazer a lição de casa. A menina grande teria, dali por diante, lição de casa para fazer. Mas a mãe, das freiras e guerrilhas, tinha ideias. Nada de mesinha feinha para servir de escrivaninha. A mãe bateu perna em antiquários até achar uma escrivaninha digna desse nome. Madeira escura, gavetas largas e fundas, coisa linda. A menina tinha um quarto, colcha e paredes cor-de-rosa, uma escrivaninha de 1880, estojo, mochila, Congas, o diabo.
Pronta.
A menina se sentou na carteira (palavra velha com significado novo, nada das mesinhas baixotas do jardim-de-infância, aquele tal de pré-primário prometia), ao lado duma lourinha de óculos chamada Cláudia. Menina grande instalada, lápis apontados, lousa verde-escuro, caderno, borracha verde-claro, apontador de ferro, tudo certo, colega Cláudia e a professora Helena. Tia Helena.
Tudo bem.
Tia Helena foi até a lousa e, à mão livre, como só as professoras sensacionais da não menos sensacional década de 1970 sabiam fazer, desenhou uma abelha. Uma enorme, nariguda e fofíssima abelha. Depois disso, solene, anunciou:
— A de abelha.
E foi aí que nossa menina grande, de maria-chiquinha e Conga, se perdeu.
A do quê?
A menina simplesmente não conseguia entender como cada letra se relacionava com o som, como tudo aquilo tinha a ver com o símbolo e como toda aquela confusão formaria uma palavra.
A do quê?
*
Meses do mais absoluto terror se seguiram. Ela não conseguia aprender a ler.
A do quê? B de bebê? C de carneiro?
A senhora só pode estar de brincadeira, tia Helena, como assim, D de dado?
A menina grande abria seu estojo novinho, cheio de lindos lápis de cor apontados e pintava de amarelo e preto a barriguinha da abelha, de azul o céu acima do carneirinho (C de céu, outro mistério da vida), enquanto pensava que jamais seria capaz de aprender a ler e escrever. Aquilo era terrível. Depois de seis anos de uma vida despreocupada e feliz, aquilo. Aquela certeza.
*
Um dia, como sempre acontece na vida, chegou o momento do E, de elefante.
A menina grande, que durante meses tinha segurado sozinha aquele segredo enorme e doloroso, simplesmente desabou. Chorou e chorou e contou para a mãe o terrível segredo: ela nunca poderia ler e escrever como as outras meninas. Ela nunca, nunca poderia ler os livros da casa ou escrever bilhetes para a vovó.
Ao contrário do que imaginou a menina, a mãe não ficou brava ou decepcionada ou triste ou irritada. Devagarinho, enquanto pintava o elefante de cinza clarinho, a mãe — guerrilheira, freira e normalista — explicou para sua menina grande que os sons e as letras não eram nada demais. Eram apenas palavras. As palavras de todos os dias. E as palavras de todos os dias eram formadas não por letras, não por sons, mas por pedacinhos de letrinhas juntas, as sílabas.
*
Não foi mágica. Não foi de um momento para o outro. A transformação que há muito vinha acontecendo na escola, finalmente, nos dias seguintes, com a ajuda da voz baixinha da mãe, se instalou na cabeça da menina. Aquela menina grande.
*
As sílabas inventavam as palavras. Nada de letras, nada de sons para aquela menina. Sílabas.
A menina entendeu.
Pedacinhos de palavras, palavras elas mesmas.
Sílabas.
*
Já era o tempo da letra E e, ao lado de sua mãe, que não era de colo e nem de abraços, com o corpo colado no braço dela, ouvindo sua voz de cantora e sentindo seu cheiro de café, a bordo daquela escrivaninha tão linda e velha e escura, a menina grande entendeu.
E de elefante.
As sílabas. E a tia semianalfabeta que me ensinou o mistério disse: é só juntar uma com outra.
Das maiores alegrias, quando o elefante finalmente faz sentido.