Mais ou menos dois meses depois de meu marido morrer, fui buscar o terno-de-alfaiate que ele havia encomendado. Minha amiga Telinha foi comigo porque sozinha eu seria incapaz. Subimos a Rebouças no velho pejozinho azul, embicamos no pátio do alfaiate que, ao ser informado de motivo de ser eu e não o Sr. Cardoso a buscar o belo terno, quase morreu de pena de mim, explicando que gostava que o cliente experimentasse o terno novo no ato da entrega.
Escondido por uma capa grossa de plástico preto e pendurado num cabide oculto, o terno sob medida, primeiro e último da vida do Alexandre, foi para o banco de trás do pejô. Talvez eu tenha chorado um pouco na volta para casa, mas não me lembro e, sinceramente, não quero saber se a Tel se lembra.
Do carro, ele foi para o fundo do armário ainda na capa. Há dezessete anos está dependurado detrás de todos os casacos felpudos que São Paulo não nos permite mais usar.
Lembrei do terno do Alexandre porque tenho discutido com dois autores meus sobre Coisas Com As Quais Não Podemos Lidar No Momento. Projetos inalcançáveis, pesquisas que nos paralisam, títulos que não se encaixam, textos que não vão a lugar algum.
Escritores têm disso. Coisas Com As Quais Não Podemos Lidar No Momento. Não são, ainda, projetos abandonados. Não são patins que desistimos de domar e largamos no banco do quintal para serem estraçalhados pelos dentes dos cães, amolengados pelo molhado da chuva. Não. São projetos. Existem, ocupam pastas e arquivos, têm nome e destino traçado. Mas, por ora, estão no escaninho das Coisas Com As Quais Não Podemos Lidar No Momento.
Acontece que não há o que fazer. Não existe sessão de análise, beijo de namorado ou reza que acelere o processo das Coisas Com As Quais Não Podemos Lidar No Momento. As CCAQNPLNM têm seu próprio caminho a percorrer. Precisam de tempo, espaço, não raro também de alguma naftalina. Precisam, entenda, parar de lembrar e doer.
Ao escritor toca a mesma tarefa que cabe à viúva que escondeu o terno: aguardar que as CCAQNPLNM se rearranjem dentro do peito e se tornem Coisas Com As Quais Podemos Lidar Um Pouquinho Só.
Durante esse tempo de espera vamos organizar gavetas, dar aulas de inglês, escrever newsletters, dar banho no cão, editar uns livros bonitos, produzir alguns dos mais lindos textos de amor desta geração para quem absolutamente não os merece, arrumar o escritório (e suas muitas prateleiras) e parar de roer as unhas mais ou menos três vezes por ano.
Vamos confiar. Com graça e dignidade. Com uivos em público e ataque de pelanca.
Um dia, com ou sem alguma surpresa, você abre o armário, o arquivo e pensa Opa (eu penso muito opa). Dá pra relar ali no plástico que protege o terno? Dá. Dá pra abrir o arquivo e retomar o projeto? Dá. Talvez não seja possível descer o zíper e encarar o tecido risca de giz, mas olha, deu pra passar a capa de plástico preto pra parte da frente do armário. Não matamos o projeto no peito, mas relemos o que fizemos até aqui, mandamos um pedaço para o preparador, uns parágrafos para a revisora, imprimimos umas pagininhas.
Odeio o clichê, mas você, seu terno, seus projetos precisam de tempo. Carecem ficar longe dos olhos do outro, dos teclados, do universo, da respiração. Devem mesmo se esconder atrás de casacões em busca de paz. Até que feridas se fechem, dores sejam apaziguadas, ofensas, esquecidas e a saudade do sorriso seja tanta que possamos começar mais uma vez.
Esperamos e somos esperados. Tudo vai ficar bem.
(Claro que isso é uma fábula. Jamais encostarei no plástico que guarda o terno do Alexandre. A Suzi prometeu que, quando eu finalmente me mudar para Curitiba – mais uma das Coisas Com As Quais Não Podemos Lidar No Momento, ela vai cuidar disso para mim)
Fique bem, nós nos vemos no domingo.
Receba meu carinho.
Fal
Conhceço bem o escaninho das Coisas Com As Quais Não Podemos Lidar No Momento. Obrigada por nomeá-lo e, de algum modo, nos tranquilizar.
No mesmo lugar onde estava meu "Menino Maluquinho" tem uns álbuns de fotografia que minha mãe fazia, com direito a legendas. Procurando algo que achei que estaria colado em uma das capas (e não está) achei uns cartões de aniversário que ela me escrevia e depois colava no álbum. Vi, mas não tive coragem de ler. Talvez até meu aniversário deste ano eu consiga tornar isso uma CCAQPLUPS.
Adoro seus textos :-)