Um dia escrevi que são as menores coisas que me partem o coração.
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Ontem, tentando me entender entre tarrachinhas, elásticos, pequenos potes de creme, clipes com berloques de âncoras e ursinhos, anelzinho de cobre que a mã comprou no hippie, canetas-sem-tampa e tampas-sem-canetas, acabei por me dar conta de que, sim, é o que há de menorzinho e mais fácil de perder por entre o desfiladeiro que separa o colchão da guarda da cama que nos exige maior esforço, que nos custa mais tempo e que, sim, tem maior potencial para partir o nosso coração.
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A absurda dificuldade de arrumar as coisas pequenas da vida. Os detalhes, o petitico, continhas, fios, brinquinhos, clipes, rolos de fita adesiva, rolos de fita dupla face, rolos de fita crepe, a tampa da garrafa de água da Hello Kitty, o controle remoto (ah, o controle remoto), o único carregador de celular desta casa que realmente carrega o celular, a rolha do vinho que ele enfiou na minha mão no domingo e que eu queria guardar como um tesouro.
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A coisa toda vira um pesadelo, uma delícia, uma montanha incontrolável de coisiquitas e pontiagudos e macios e durinhos que se perdem em gavetas, no cachepô de elefantinho, no vaso-caneca de capivara.
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Falo do cotidiano, do que nos cerca, do que torna a vida tão (ou quase tão) suportável quanto a geladeira, mas que dá muito mais trabalho para manter e cuidar e guardar.
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Porque, né, a geladeira está lá. Há pouca dúvida do que fazer com a geladeira. Podemos até discutir se vai ser ligada na tomada da pia ou próxima ao fogão, antes ou depois da porta de correr que esconderá a cozinha da visão dos pacientes, mas é isso.
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A geladeira é absoluta, ela está ali, mais ou menos organizada e limpa (limpíssima e organizadíssima, a minha, eu seria um assunto e tanto praquele moço do instagrão que ridiculariza quem curte arrumar geladeira), com mais ou menos imãs fofos na porta (a minha, mais), de modelos mais ou menos modernos, inox, não inox, mas ali está ela, trambolhão. Não se perde uma geladeira (a não ser que sua casa seja imensamente mais louca do que a minha), ela não some em potinhos, caixinhas ou dentro da lata de biscoito dinamarquês amanteigado que agora, risos, é caixa de costura. Ninguém suspira e, resignado, afirma vou entrar no Mercado Livre e comprar mais um rolo de geladeira, porque sinceramente não sei o que fiz do meu.
A geladeira está ali. Inevitável, definitiva. Jamais desaparecida. Jamais perdida na gaveta de quinquilharias.
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Você já me entendeu e à minha angústia, claro que sim. As palavras, as palavras. Exatamente o mesmo.
Há o tema, quero falar de perda, quero falar de rinocerontes, quero falar do Helio, quero contar a história da bicicleta ou do meu vô modernista. O livro da mulher que, antes de morrer, vê seu amor morrer e se esvai lentamente, de coração vazio. Há o livro de contos, o de receitas com a Lu, o de amores tristes com o Iata, há o livro-anotação, a crônica para a Esther, o podcast dropeano acerca de mais um pintor. Sei quem são, onde estão, sei o que quero dizer, têm até título, os danados. Os grandes temas, as minhas geladeiras.
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Mas e as palavrinhas, os sinônimos, a definição exata? Quedê a palavra que explicará tudo (o inferno da minha vida de tradutora, a palavra que explica o que esse gringo disse, meu Deus, a palavra)? As palavras, cada uma delas, pequeninas, fugidias, rapidinhas, se perdem em agendolas, cadernetas, bloquinhos-que-grudam, agendas, caderninhos, recados grosseiros de Whatsapp, cartões de aniversário que nunca enviamos, blocos de papel amarelo pautado que roubei do Woody Allen, nas resmas de papel costurado que a Suzi manda para mim
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Estão as palavras, as minhas, as suas, espalhadas em vasinhos, na caixa amarela do corredor, na caixa em formato de pássaro, na gavetinha do meu móvel de menina.
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As palavras se escondem, se confundem, somem debaixo da almofada do sofá feito moedinhas e linhas, fotos 3x4 dos meninos e latas minúsculas com velinhas perfumadas e, então, acabam misteriosamente arquivadas em pastas deste ilógico computador, com títulos estranhos como 101 quarteirões – não reler, Nomes possíveis, Quem escreverá sobre isso, A busca que não termina, A possibilidade de uma valsa.
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Lidar com elas , meu pão de cada dia, é mantê-las em eterno rodízio, perene reorganização, é passar os adjetivos bobos para cá, as definições do céu cinzento que vejo do meu quarto para lá, é manter, no potinho roxo, as dez maneiras que descrevem como ele percorre minhas costas com as mãos, minhas lembranças de menina no gavetão ao lado da escrivaninha, é peneirar sentidos, afinar intenções, enterrar bem fundo as palavras duras que eu não disse (que jamais, jamais direi), é ordená-las por tamanho, peso e cor sobre a bancada, é prender argolas coloridas aos seus pés, taças cheias até a boca que minhas palavras são.
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Não desistimos de brincos-sem-par (estamos na sexta casa, mas ainda dizemos a nós mesmas que o outro reaparecerá na próxima mudança), não despejamos na lixeira a forma de empadinha cheia de clipes, não jogamos fora os brinquedinhos do gatinho há tanto morto, não nos desfazemos de qualquer uma de nossas palavras, apenas as mudamos entre caixinhas, caixas de sapato, potinhos vazios de vela e no cestinho de palha colorido que o amor nos trouxe da Colômbia.
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Classificar, ordenar, rotular, denominar, separar, dispor, categorizar, distribuir, identificar, agrupar, catalogar, arquivar, especificar, fichar, coordenar, dividir, arranjar, acordar, relacionar, arrumar.
Considerar.
Cada palavra, cada dia, cada respiro, enquanto qualquer coisa em mim ainda existir, enquanto eu puder ainda puder existir.
Palavras jorrando, você existindo. Dessa fonte infinda haveremos de beber, beberemos juntos. Celebraremos o amor à vida que as palavras contém e retém e revelam. Grato, Fal!
Eu sou uma pessoa que vive de e para palavras (é até o nome da minha newsletter). Entendo demais!