Vou poupar você do meu alemão, mas não dos sofrimentos que o amor nos traz, não do semblante de um velho rei
Um mar intranquilo que ruge em torno de nós
Le roi de Thulé, Pierre Jean van der Ouderaa, 1896
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O imenso Guilherme de Almeida traduziu o poema de Canção do rei de Thule (Der König in Thule), de Goethe.
Houve um rei de Thule, que era
mais fiel do que nenhum rei.
A amante, ao morrer, lhe dera
um copo de oiro de lei.
Era o bem que mais prezava
e mais gostava de usar:
e quanto mais o esvaziava
mais enchia de água o olhar.
Quando sentiu que morria,
o seu reino inventariou,
e tudo quanto possuía,
menos o copo, doou.
Depois, sentando-se à mesa,
fez os vassalos chamar
à sala de mais nobreza
do castelo, sobre o mar.
E ele ergue-se acabrunhado,
bebe o último gole então
e atira o copo sagrado
às ondas que em baixo estão.
Viu-o flutuar e afundar-se,
que o mar o encheu de seus ais.
Sentiu a vista enevoar-se:
E não bebeu nunca mais!
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Pierre Jean van der Ouderaa nasceu em Antuérpia, Bélgica, em 1841, e frequentou a Royal Academy of Fine Arts.
Depois de três anos em Roma estudando especificamente Rafael — a quem adorava —, voltou para casa e foi pintor a vida toda, um bom pintor burguês, cheio de encomendas, um provedor — sem se esquecer de dar umas passeadas por aí para pintar na Espanha e na nossa muito querida Cartago (nos mapas, Cartago se chama Tunísia, mas nós jamais nos deixaremos enganar).
Produziu lindamente, trabalhou para caramba, nunca ficou famoso. Ele não é lembrado em livros de arte, ele não é lembrado em retrospectivas de museus, ele não é lembrado.
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A produção que não alcança para além do mais próximo não é, jamais será, exclusividade dos escritores e poetas, como você pode imaginar. Ser uma eterna promessa é maldição que pode acometer a qualquer um que produz usando o engenho e a arte que nos cabe neste latifúndio.
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Um realista meio descambado para o romântico, essa seria sua definição na Imensa Impecável & Modesta Antologia Vitiello de Pintores Impossíveis, que eu ergueria se encontrasse patrocínio e o tipo certo de medicação.
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Ouderaa perseguia um mundo mate, de tons leves, mas profundos, todo ele feito de cenas de draminhas e retratos — especialmente retratos de velhos reais ou imaginários, como o autorretrato abaixo, de 1904.
Um mundo de sombras, rugas, veias azuladas e sinais de nascença.
Um mundo de dores perceptíveis, sim, mas ainda com algum encanto, alguma beleza, sempre com a possibilidade duma promessa, de que coisa ou outra nos alcance e nos surpreenda e nos faça sorrir e embale pelo tempo que nos resta nalguma matéria de sonhos.
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Quando sua amada morreu, nos conta Goethe, o rei de Thule, desconsolado, mirava o próprio fim, mais miserável ainda, pois completamente só.
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A certeza de que passaremos o resto da vida na mais absoluta solidão — acredite em mim se você não quiser acreditar no rei, em Goethe ou no querido Ouderaa — é muito, muito desoladora e se enchemos nossa vida de livros, pijaminhas fofos e sorvete sem açúcar, ninguém pode nos julgar.
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Traído pelo tempo, por suas certezas e título, pelas promessas que recebe um emissário divino e que — ô meu rei — nunca podem ser cumpridas.
Traído, é claro, pelo amor.
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Inconsolável, abatido e contemplando o próprio fim, o rei de Goethe, um rei de contos de fadas, até com a coroa na cabeça, segura o último presente que recebeu da mulher que amou antes de dispensar a taça em favor das águas escuras que também o aguardam (nos aguardam, Fabia), a si mesmo e a tudo o que ele e suas conquistas possam ter significado.
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Estilhaços metafóricos ou não se perdendo no infinito; no que de tão distante é aqui do ladinho, meu bem; no abismo do que não está, no mar intranquilo que ruge em torno de nós.
Que jeito espetacular de desaparecer.
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Era 1896. Um velho rei dum velho século — XVI, talvez XVII— deixava-se morrer como o século em que foi instalado, o XIX.
Temeroso, desgostoso e em profundo desalento, o rei que Oneraa tomou de Goethe — tem mil anos de perdão a apropriação entre românticos, se não de fato, de alma — fita um fim que nem é dele — o dele se foi há tanto.
Um fim que ainda nos assombra.
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As luzes da Belle Époque, os espartilhos e a rainha Victoria estavam por um fio, assim como meu adorado Toulouse Latrec, assim como o rei de Thulé.
Em breve a 1ª Guerra Mundial esfregaria nossa cara no xixi, só para se certificar de que havíamos entendido.
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Nem as trincheiras tomadas pela lama e pelo gás mostarda, nem as saias cada vez mais sequinhas e curtas, nem o anarquismo ou os Romanov baleados por camaradas de boné se lembrariam do rei.
Ou do século XIX.
Ou, e isso não tarda, de nós, que mais de cem anos depois miramos com coração estraçalhado, pele cansada e olhos vazios — não de lágrimas —, o mesmo fim.
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Não nos poupe de nada, nem do alemão!
Você é minha musa literária!! rsrsrs