Definitivo é um adjetivo que dispensa o “tão”.
Definitivo é ou não é.
Ainda assim, cabe o “tão” na perda, a minha. É preciso massacrar o sentido do imutável, do categórico, do que não vai se abalar, do irrevogável.
Uma perda é sempre definitiva, ainda que pareça insignificante, ainda que um clips, um elástico de cabelo, um suspiro, uma ilusão petitica.
Nas raras vezes em que o perdido é encontrado, volta mudado, volta outro, porque nós mudamos no processo de não mais tê-lo nas mãos, sob a vista, no sítio em que costumava ficar.
O clip foi encontrado, nós não somos os mesmos.
Toda perda é, a seu próprio modo, definitiva.
Toda perda é tão.
Pode-se perder de um tudo: reinos, rumo, cães felpudos, o amor da nossa vida, o cartão do banco, o RG (eu, três vezes), a hora, o papelzinho com o endereço, o medo, a coragem.
Assustados, mais para perto do fim do que do começo, nós nos damos conta de que somos, ahá, perdíveis – cada um de nós a seu tempo, ou todos juntos (caso nos tome de assalto o apocalipse zumbi).
A perda, diz nossa tia-avó com seu cabelo em variados tons de lilás, pince-nez na ponta do nariz e xale de tricô (a tia-avó de vocês, não sei, a minha tia-avó imaginária é assinzinha) nos levará a todos e nos perderemos uns dos outros.
A literatura, a nossa, lida com perda todo o tempo. O que desejávamos contar e o que realmente transpusemos para o papel são coisas diferentes. No processo que leva a ideia do cérebro às letras, perdemos.
Dispensamos a descrição da luz nos olhos dele na entrada no metrô, alteramos a análise de nossa expectativa, alteramos o cardápio do almoço que tivemos (se é que tivemos), deixamos para lá o sabor do chá que, enfim, nossa protagonista não vai mesmo beber numa xícara amarela.
A perda é um oceano. Depois de uma semana feito a que acabo de atravessar, minha perda é Pantalassa, lotada de répteis gigantescos e ferozes que destroçam o que veem pela frente.
Minha literatura, parte maior do que sou e produzo e penso e respiro, ressente-se dessa invasão de água e monstros marinhos, matéria de que são feitos os pesadelos, assusta-se e, quando não está escondida detrás da escrivaninha, torna-se repetitiva, choramingas, fraquinha, molenga.
Tive de dar um duro danada para reencontrá-la dessa vez. Temi tê-la perdido para sempre. Foi preciso muito trabalho e tentativas, o abandono de um livro, muito choro e taças cheias, boas doses de coragem e se, como um recém-convertido, posso agora dar meu testemunho acerca de palavras que voltam e tempestades que passam, sei que foi com a faca do Tarzan na mão que abri essa picada.
Uso mangas compridas e gola alta para esconder as metáforas ruins e as cicatrizes feias e volto ao ponto de segurança quase todas as manhãs, meu particular ritual que, ressignificado, permite que eu permaneça e produza, permaneça e cuide do que precisa de atenção. A minha atenção.
A volta do escritor à própria literatura não é coisa pouca, não é coisa fácil e nem sempre é coisa possível. As palavras voltam (certa ocasião eu disse isso ao homem que amava), mas a literatura? Ah, ela, uma vez perdida, precisa ser campeada em cada paragem, precisa ser atraída de volta por meio de meias verdades e reboladas fraudulentas, precisa ser capturada em armadilhas para coelhos e reinventada, moldada novamente, reaprendida, reconhecida, relembrada e adulada até que mereçamos, quem sabe, sua confiança.
Ainda assim a literatura não retornará a mesma, pois é outro o escritor que somos, com outras manias, outras manhãs, novas telas, método de trabalho mudado, lista de personagens num bloquinho agora amarelinho-pintinho.
Nas pausas eu me sento nos degraus da garagem tomando chá e fingindo que sei fumar meu mentolado.
Quase sempre é madrugada, quase sempre a rua está quieta e, olha, perda é a última coisa na qual quero pensar.
Fabrico uma velha tia-avó e seus ditados, sopro o leite quente, o cigarro se queima sozinho, choraminga a gatinha selvaginha, roncam o gatão pelancudo e a gatona miminha, saltita o cão maluquinho e penso no resto: as cidades pronde eu gostaria de ir, as tarefas de amanhã, as histórias que pretendo contar, se comprei limão, qual era mesmo o nome da música e, antes que me dê conta, volto meus olhos à cafeteria com varanda, às promessas impossíveis, às declarações reveladoras, à carta que nunca mereceu resposta (e por que mereceria?) e penso nos olhos mais estranhos que já vi. Essa perda tão profunda, tão definitiva, tão minha.
A tia-avó tem razão: nós nos perderemos uns dos outros de novo e de novo.
Dolorido e bonito. Obrigada por mais um, Fal, e boa semana.
Intenso, profundo, provocador. Perdi um pouco da minha literatura, que ando recuperando, aos poucos. A sua escrita me enriquece, viu?! :)