A Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC) afirma que, em 2019, cada um de nós, brasileiros, consumíamos mais ou menos cinco quilos de café por ano. Eu faço a minha parte para bagunçar as estatísticas e consumo bem mais do que isso.
Quem me conhece sabe que ou a pessoa menos “datas comemorativas” do mundo e que tem umas, tipo Dia da Mulher, que me fazem revirar os olhos até a nuca.
Mas hoje é Dia do Café e eu adoro café. Mães, comércio, crianças, médicos legistas, consumidores, mulheres, Papai Noel, árvores, pais, Coelhinho da Páscoa, goleiros, aço (sei lá o que mais tem “dia”), não gosto muito, não. Mas café, ah. Adoro café. Que bom que ele tem o diinha dele. Espero que tenha recebido presentes e sido abraçado pelos familiares e amigos.
Styling: Johanneke Procee e Regina Mol
Dos pastores etíopes aos monges árabes, a cafeína – maravilhoso composto orgânico pertencente ao grupo dos alcaloides – mexe numa porção de baratos muito loucos da pesada em seu cérebro (pouparei vocês de maiores explicações porque faltei à todas as aulas de biologia) o que faz com que a adrenalina seja liberada em nosso corpinho de sereia, estimulando o sistema nervoso e a circulação, fazendo com que fiquemos mais alerta, espertinhos e mais corajosos para enfrentar o trabalho, a discussão, a leitura do relatório, o filme que só passa às altas da madrugada e o estudo de última hora para a prova fatal.
Bão, cafeína é extremamente solúvel em água quente – e é por isso devemos tanto ao monge árabe, ou seja, lá quem inventou de botar as frutinhas vermelhas dentro d’água fervendo. Verdade, há cafeína no chocolate, no chá, nos refrigerantes, sim. Mas o café tem mais.
Nossos irmãos muçulmanos adoravam café. Devotos de uma religião que não permite o consumo de álcool, os muçulmanos abraçaram o café com entusiasmo – ah, os encantos de um estimulante não alcoólico.
Desde o século X, eles vêm tomando café – o que os redime, em parte (pelo menos aos meus olhos), do desenvolvimento da matemática e da, urgh, geometria.
Em 1470, quando o café chegou a Meca e Medina, ele ainda era feito com grãos torrados com casca, depois esmagado até virar pó e depois misturado à água fervente para ser consumido sem coar.
A primeira cafeteria do mundo foi aberta, em 1475, em Constantinopla. Chamava-se Kiva Han. A Turquia tinha leis que rezavam que, se o marido não pudesse prover sua casa com certa cota anual de café, a esposa poderia pedir divórcio. Tem como não adorar esses caras?
Styling: Johanneke Procee e Regina Mol
No fim do século XVI, um botânico italiano chamado Próspero Alpini foi para o Egito como médico pessoal do cônsul veneziano no Cairo, George Emo. No Egito, além de cuidar de Signore Emo, estudou plantas que na Europa eram raras ou desconhecidas.
Alpini voltou para casa extasiado com suas descobertas pessoais sobre o café. E ativo. Muito ativo. De volta à Europa, publicou trabalhos sobre as plantas que estudou no Oriente. Num deles, De Medicina Egyptiorum, publicado em Veneza, em 1591, falava da tamareira, da bananeira e do baobá, além de fazer a primeira descrição do cafeeiro que a Europa conheceu. A Europa, aos poucos, ia tomando pé na maré deste verão (desculpa pela citação, gente, eu sou muito anos1980).
Em 1600, o café passou a ser plantado no sul da Índia e em 1610, Sir G. Sandy, um poeta inglês em viagem ao oriente, anotou que, naquela região, bebia-se algo chamado coffa, que era servido quente, quase fervendo.
Na Europa, o café chegou a Veneza em 1615 (berço da primeira cafeteria europeia, em 1645), em 1616 à Holanda, em 1637 à Inglaterra (graças a Nathaniel Conopius, um estudante de Creta que ia estudar em Oxford, e a Inglaterra abriria sua primeira cafeteria, em 1650, em Oxford).
Ah, olha que coisa bacana: em 1687, o exército otomano cercou Viena – que, aliás, conhecia o café desde 1650. Os turcos, vencidos, fogem, abandonando as sacas de café que deveriam abastecer o exército otomano. Os vienenses ficaram com o café, abriram sua primeira cafeteria e lá, o café começa a ser coado, e a ser bebido adoçado e com leite.
A França só teve sua primeira cafeteria em 1686, o Le Procope, que existe até hoje. Caras como Diderot, Voltaire, Montesquieu e d'Alembert, Musset e Verlaine beberam café lá. A Revolução Francesa foi gestada lá. As notícias diárias eram afixadas na entrada, uma dama ou um cavalheiro podiam beber cafés com creme, ou sem, tomar refrescantes sorvetes, comer tortas deliciosas, ver e serem vistos. Era chiquérrimo. Frequentar cafés em Paris passou a ser um ritual social graças ao pioneiro Le Procope.
Na Europa, a exemplo do Oriente, as cafeterias (que também, seguindo o exemplo oriental, eram frequentadas principalmente por homens, viu?) proliferam e tornam-se o foco da agitação política, cultural e social. Era nas cafeterias que cavalheiros de toda a Europa conversavam sobre negócios, literatura, questões particulares e, claro, suas últimas conquistas.
Em 1704, a primeira máquina de torrar café tem sua patente concedida. Entre 1706 e 1726, o café, que já era plantado em Java, começa a ser cultivado no Haiti, Santo Domingo, Suriname e, finalmente, Brasil. Em 1730, ele começou a ser plantado na Jamaica, graças aos ingleses. No Brasil, São Paulo e Minas Gerais começam a plantar café em 1770 – graças, jamais devemos nos esquecer, à mão de obra escravizada, força motriz de toda a fortuna que se fez com café no Brasil. Aqueles casarões de Higienópolis e da avenida Paulista existiriam sem essa mão de obra tão convenientemente barata.
Em 1750, havia cerca de seiscentas cafeterias em Paris, é o que nos ensina o Professor A. Franco em seu delicioso De caçador a gourmet.
Hum, os franceses transformaram o café em bebida matinal no século XVIII, Deus os conserve. São os franceses, portanto, os responsáveis pelo fato fazer com que meu dia seja suportável.
O café é um dos mais valentes responsáveis por este mundo, este novo mundo, onde vivemos. Foi parte importante da construção dessa sociedade pós-Revolução Industrial.
A chegada do café à Europa muda o jogo. Pela primeira vez, você podia sentar com seus amigos para conversar sem sair completamente bêbado. O trabalho e o café se tornaram parceiros chegados na época da Revolução Industrial por um motivo óbvio: não dá para operar as máquinas, aqueles teares enormes, nem dá para fazer contas, planejar uma escala de serviço, fazer todas aquelas dezenas de coisinhas e coisonas absolutamente fundamentais quando se está tentando criar um mundo capitalista se todo mundo estiver cheio de hidromel e cerveja. Ficar doidão o tempo todo não dá lucro – a não ser que você seja o Keith Richards.
A cafeína e seus maravilhosos efeitos foram parte integrante, fundamental e decisiva da Revolução Industrial. O café passou a ser a bebida eleita da ética protestante, daquele mundo viciado em trabalho. A recatada era vitoriana nasceu ali, na xicrinha de café.
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A primeira cafeteria londrina abriu em 1652. Em 1700, eram mais de duas mil. Eram chamadas de universidades do centavo – por um centavo, você comprava uma xícara de café e passava horas falando sobre a vida e acertando o prumo da civilização ocidental. As discussões intelectuais podiam ser sérias e profundas – afinal, estávamos todos sóbrios. A urna que conhecemos e usamos até hoje, quando as maquininhas de votar dão pau, nasceu numa cafeteria londrina, onde os clientes podiam votar sobre quaisquer questões que fossem discutidas, tendo seu anonimato preservado.
Todo o fim do século XVII e o começo do século XVIII basearam-se no café, giraram em torno do café, foram movidos a café. Que os anjos dos céus digam amém.
Numa das cafeterias londrinas nasceu o jornal moderno: esse treco dividido em seções, porque as pessoas iam aos cafés, anotavam o que conversavam e ouviam, depois publicavam em panfletos que eram distribuídos.
Nossa atividade intelectual de agora, neste conturbado e estanho século XXI, deve-se, claro, a muito, muito trabalho, não apenas ao café. Alfabetização em massa, voto universal em boa parte do mundo, respeito às diferenças (tamos meio que falhando nisso ainda, mas vamos em frente, uma hora a gente alcança), estímulo à pesquisa e miles e miles de detalhes, manobras, mudanças e avanços nos trouxeram aqui e nos levarão além – a não ser que os zumbis nos alcancem antes. Mas não nos esqueçamos, o café esteve conosco todo esse tempo.
Após horas e horas em cafeterias por este mundo de meu Deus, porém, se não reinventamos a roda, não salvamos as baleias, não escrevemos sequer um artigo a quatro mãos que prestasse e não formulamos uma teoria boa de verdade sobre o que quer que fosse, a culpa é nossa, não do café.
O café faz a parte dele.
Styling: Johanneke Procee e Regina Mol
Obrigada por estar aqui.
Beijos, bom comecinho de semana.
Fal
Onde ler:
sites:
A história do café – International Coffee Organization (consultado pela última vez em 2024 04 10)
História do café – Café Mundo (consultado pela última vez em 2024 04 10)
A história do Le Procope (consultado pela última vez em 2024 04 10)
livros:
De caçador a gourmet - uma história da gastronomia (2001), do Ariovaldo Franco, editora SENAC.
How to make the best coffee at home (2022), do James Hoffmann, editora Mitchell Beazley.
História do café (2008), da Ana Luiza Martins, editora Contexto.
Quando li "5 quilos de café por ano" pensei: "Eita, quem está tomando os 4 quilos que eu não bebo?"
Ahaha pelo jeito, você! E assim entendemos o conceito de média sem sofrer com, ou frequentar, a aula de matématica. 😀
O Procope, aliás, teve como fundador e primeiro dono, um português.