Ser leitor de rua não é moleza. Nós que lemos na rua somos os mártires da causa.
Primeiro porque temos de lidar, diariamente, com olhares de pena dos leitores de maquininha-de-ler-livros, que dizem coisas como: “Ah, você ainda não tem o Reader-veryspecial-heavenly-i’mthebest X99ERS?” enquanto, em pensamento, completam: “coitada”.
Depois, porque nós, os leitores de rua, temos de ser organizados. E, como o Batman, temos de estar preparados para tudo.
Para começar, pense no que você quer dizer com “ler na rua”. Você vai ler andando pelas calçadas? Se você mora em São Paulo, não recomendamos.
Vai ler no ônibus, no metrô, no carro, no banco da praça?
Os livros-de-ler-na-rua precisam ser queridos e adorados, mas suas cópias têm de ser dispensáveis. Ah, sim. Tenha mais de um exemplar dos seus livros-de-ler-na-rua. Considere: em caso de assalto, sequestro de ônibus, hecatombe nuclear ou acidente com a caneca de café com leite, o livro-de-ler-na-rua pode desaparecer e/ou ficar num estado lamentável.
Resumindo: evite saracotear pelo mundo com a primeira edição autografada do Não verás país nenhum, do Loyola Brandão.
Nós, os LDR, pensamos nisso tudo.
Outra coisa: para os LDR, os detalhes anatômicos do livro importam, e muito. Escolhemos livros seguindo critérios que, bem, servem prum monte de cousas: Grande demais; Pequeno demais; Desconfortável de segurar; Cabe no meu colo no metrô; Vai me matar de vergonha na fila da lotérica; Se eu tentar lidar com ele na rua, vou ficar toda descabelada.
Pense bem. O livro-de-ler-na-rua há de ser confortável de carregar. Não pesado demais, nada de capas escorregadias, encadernações delicadas. O livro-de-ler-na-rua também não pode ser muito pequeno e levinho. O ideal é um livro encorpado, confiável, que possa ser inclusive (fechem os olhos os que forem mais sensíveis) dobrado para trás. Sim, sim, sim, nem toda lombada permanecerá intacta na rua, meus delicados amigos. Vez que outra, especialmente em transportes públicos, não se tem as duas mãos disponíveis. Ler na rua é coisa para os fortes, avisamos.
Depois, conteúdo. Esqueça livros complexos, com letra minúscula, muitas tabelas ou daqueles que carecem de anotações nas margens. A não ser que você vá ler acomodadinha num café, livros que clamam por anotações são inviáveis para os leitores de rua guerreiros, por mais ninjas que sejam. É impossível se equilibrar no ônibus, ler, anotar, procurar o passe e esconder o bocejo ao mesmo tempo. Desista.
Também não invista em livros que provocam gargalhadas histéricas. Se seus companheiros de metrô não usarem o celular para chamar a polícia, usarão para fazer filminhos comprometedores, arruinando para sempre suas chances de um relacionamento decente. Pelo mesmo motivo, vamos evitar livros de choradeira. Uma fungadela vá lá, mas assoar o nariz no moletom do cara sentado ao seu lado entre um uivo e outro, não, não pode.
Evite também livros que provocam indignação. Se o autor é aquele colunista semanal que desperta o Hamurabi que vive trancafiado em seu peito, leia em casa, sozinho, de luz apagada (hahaha). Numa ocasião, comecei a discursar para ninguém, fula da vida com um autor idiota, plantada numa interminável fila do supermercado e, creia, os seguranças entraram em ação.
Finalmente, fique longe dos livros que levam à catarse. De Minha mãe, meu modelo, a O futuro de uma ilusão: fuja desse tipo de livro. De algumas obras só devemos ler poucas páginas de cada vez, em casa, na véspera da sessão semanal de análise, acredite em mim. Escolha os romances leves, as biografias dos queridos, os diários lindos e as coisinhas felizes.
Leve seus livros para a rua. Eles são ótima companhia, escudo contra aquela conversa insuportável em salas de espera (onde todo mundo acha que está liberada a descrição de doenças nojentas e suas apavorantes e espúrias manifestações), têm poderes mágicos que fazem mesmo a fila andar mais depressa e blindam sua mente e seu coração quando, no ônibus ou no metrô, tudo que você deseja é um chuveiro quente, uma cama macia, silêncio e paz.
Leve seus livros para a rua.
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Segue uma curtíssima e alegre lista dos mais amados, os livros que leio no metrô, leio enquanto espero minha mãe ou no café, enquanto minha querida amiga Maloca lê A luta operária ao meu lado no café da manhã.
Livros-de-ler-na-rua:
Você jurou que eu ia ser feliz, da Sônia Nolasco, da Editora Globo.
Franny e Zooey, do J.D. Salinger, tradução do Caetano W. Galindo, ed. Todavida.
Grimble, do Clement Freud, tradução do Antonio de Macedo Soare. A minha edição é muito, muito antiga, mas existe uma edição nova da Pequena Zahar que junta os dois livrinhos do Grimble, com belas ilustrações do Quentin Blake, um baita ilustrador.
What Jane Austen ate and Charles Dickens knew, do Daniel Pool, publicado pela Touchstone. (uma editora brasileira com grana e bom senso poderia me chamar pra traduzir esse, né?)
Diários e Cartas, da Katherine Mansfield, ed. Revan.
Nos meus quase 9 anos de Rio de Janeiro li muito nos ônibus e metrôs. Numa das vezes perdi o momento da parada e fui até o ponto final. Estava lendo "Cabeça de turco", obra que li de um fôlego só!!
eis aqui uma newsletter que eu levaria pra ler na rua sem a menor vergonha de deixar escapar um sorriso e um sonoro siiiiiiiim - disse tudo e mais um pouco