Corremos um risco ao não nomear as coisas mil vezes maior do que o risco que corremos ao nomeá-las: coisas sem nome ganham o falso (muito, muito falso) status de desimportantes.
É fácil fingir que a coisa sem nome não está ali.
A coisa sem nome nem precisa ser varrida para debaixo do tapete: como varrer o que inexiste? Não a escondemos das visitas, da esposa, dos amigos com quem alugamos bicicleta pra passear pela avenida. Coisa? Que coisa?
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O azul existia para os gregos, em suas vidas, suas retinas, seus dias. Porém não há, é verdade, tanto azul na natureza quanto temos das outras cores. Há mais verde e branco e preto do que azul em torno de nós. São poucas as comidas e animais e pouquíssimas as flores azuis. A rareza do azul na vida cotidiana levou os gregos a não nomearem esta cor por muito tempo. O azul era chamado por nomes outros, definido pelo tanto de claro ou escuro que continha. Vem daí a suposição de que gregos não viam o azul. Ver, eles viam. Mas não se importavam o suficiente para nomeá-lo e, arrá, quem vai se preocupar com algo que nem nome tem? Olá, efeito tostines.
Nada caro ou raro ou fundamental era azul para os gregos, tão diferentes dos egípcios, todos olhos para a cor.
A ausência ou imprecisão do azul no léxico de cores grego deve ser estudada primeiro em relação a tal léxico, à sua formação e ao seu funcionamento e, em seguida, em relação aos sistemas de valores (...), mas nunca em relação ao aparato neurobiológico das pessoas. Cones e bastonetes são uma coisa, termos para definir cores são outra bem diferente.
O funcionamento da visão dos antigos gregos era idêntico ao das pessoas do século XXI. Mas os problemas da cor não podem ser reduzidos a questões biológicas e neurobiológicas.
– Michael Pastoureau, em The colours of our memories
O que nos leva ao próximo ponto: E o céu? E o mar? O azul não era uma cor presente no cotidiano dos gregos, ocá, mas parte dos gregos vivia junto do mar e certamente todos eles viviam abaixo do céu.
Voltamos para o começo. O azul do céu, o azul do mar (que de quando em vez nem azul é), estão lá. Não apenas os gregos, várias civilizações demoraram para batizar essa cor que, ao mesmo tempo em que não os acompanhava na lida diária, estava lá sempre e para sempre. O azul do céu nos acompanha, nos cobre e, de tantas maneiras, nos protege, guarda, cuida de nós. Se não fosse o azul do céu, do mar, o que teríamos ali? Um buraco? Credo, gente. O azul, nosso antiburaco, tornou-se invisível para nós, gregos, exatamente por ser quase onipresente, por mais paradoxal que possa parecer.
A cor azul, diferente do verde ou do marrom, do preto, do vermelho, não passava pelas nossas mãos. Ela simplesmente estava lá. Gentil, meiga, boa de piada e de aconchego, fiel como um cão: quem, em sã consciência, dá valor para o que é tão estável, tão confiável, seja cor ou pessoa?
A imprecisão cercava nosso querido azul por todos os flancos. Ele estava ali, mas não realmente. Não pertencia ao domínio cultural dos gregos, como afirma Pastoureau, que o chamavam de glaukos ou kyaneos.
Kyaneos designava uma cor geralmente escura, nunca o azul do céu: “azul escuro, sim, mas também roxo, preto e marrom”, diz o professor.
Glaukos, termo que Homero adora, pode se referir a verde, cinza ou azul, às vezes até a amarelo ou marrom. A ideia principal da palavra é transmitir a sensação de palidez, de cor diluída. Zero vibração, zero força, zero intensidade. Era a palavra para contar da cor dos olhos de alguém. Do mel.
Os romanos também não eram os caras mais apaixonados pelo azul – e também vivam cercados pelo mar e debaixo do céu. Segundo Pastoureau, para eles azul era a cor dos bárbaros, aqueles celtas cabeludos, germânicos descontrolados e boca suja. Azul na roupa das mulheres indicava. Azul, nos homens romanos, transformava-os nuns palermas. Ah, e pessoas de olho azul não eram lá a gente mais bonita que poderia haver. A exemplo do grego, o nome do azul no latim clássico era impreciso.
Na verdade, é por isso que, ao erguerem seu vocabulário, todas as línguas românicas provenientes do latim escolheram para designar o azul duas palavras emprestadas de outras línguas: bleu, das línguas germânicas e azur, do árabe.
– Michael Pastoureau, em The colours of our memories
Se meu querido Dr. Lecter tem razão e desejamos o que vemos todos os dias, olhamos por décadas sem fim para o azul antes de desejá-lo, antes de nomeá-lo, antes de lhe permitir a importância das coisas que existem.
Demoramos para alcançar o azul, aquilo que sempre esteve ali para nós, nos servindo, iluminando, transportando e nutrindo. O azul foi um amor que levou muito tempo para chegar e se instalar, mas quando finalmente o amamos, foi de maneira absoluta e, até onde posso enxergar, imorredoura.
Nós nos cercamos do azul, não podemos viver sem ele. Azul é o frio e o que esfria, o que acalma e organiza, o que tranquiliza, a emoção que se suprime, a autoridade que se instala.
Azul cada céu sem fim, turquesas cada oceano, cobalto o xadrez da camisa dele na cafeteria que fechou, royal na caneta que dá voltas no bloco, celeste no vestido de minha mãe e, se não me trai a memória, azul calcinha o Fiat da mãe do Stra, a Flora, um Uninho que pilotávamos em estado alterado de consciência pelas Marginais quando éramos imortais e tão, tão felizes.
De não enxergá-lo jamais a nos lançarmos em seus braços e simbologia, foi longa e doce nossa andança em busca do azul. Nós o alcançamos em nome dos que não aprenderam a amar, dos que aprenderam, de nossa humanidade, de nossa imensidão.
Té semana,
obrigada por estar aqui.
Carinho,
Fal.
¨Agradeço à minha amiga Nalu Aline, que me permitiu todo esse estudo e pesquisa e encantamento.
¨Os trechinhos do livro do professor Pastoureau citados foram traduzidos por mim
As fontes:
Kind of blue – Miles Davis e o álbum que reinventou a música moderna (2011), do Richard Williams, tradução da Fal Azevedo, editora Casa da Palavra
Blue: the history of a color (2000), do Michel Pastoureau, tradução do Markus I. Cruse, editora Princeton University Press
The colours of our memories (2012), do Michel Pastoureau, tradução da Janet Loyd, editora Polity Press
Une histoire du blue-jean (1987), de Daniel Friedmann, editora Ramsay
Men in Black (1995), de John Harvey, editora University of Chicago Press
How Nature produces blue color (2012), da Priscilla Simonis e do Serge Berthier https://www.researchgate.net/publication/258042644_Chapter_number_1_How_Nature_produces_blue_color (consultado pela última vez em 14 03 2024)
How Birds Make Colorful Feathers (2015) https://academy.allaboutbirds.org/how-birds-make-colorful-feathers/ (consultado pela última vez em 14 03 2024)
Environment and culture shape both the colour lexicon and the genetics of colour perception (2021), da Mathilde Josserand, da Emma Meeussen, Asifa Majid e do Dan Dediu
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC847657 (consultado pela última vez em 14 03 2024)
Putz, eu sou fascinada pela história da palavra azul! Fiz até um episódio no meu podcast sobre ele, mas vou para os lados do Egito para contar como os antigos desenvolveram o primeiro pigmento azul: https://open.spotify.com/episode/0nl7uaSL5doi8GLAn7CVhr?si=9848caaa77314496
Adorei os trechos do Pastoreau e como você coloca poesia para falar do azul!
"O azul foi um amor que levou muito tempo para chegar e se instalar, mas quando finalmente o amamos, foi de maneira absoluta e, até onde posso enxergar, imorredoura."
Isso aqui ó <3
meu humilde bloguinho se inspirou no kind of blue do miles davis. também sou fascinada por essa cor desde sempre.
li bluets esses dias, da maggie nelson, conhece? outra doida por azul, também.