O mar está em todas as partes
O mistério, o acaso, a força do desejo e da sugestão – um exercício de escrita
O radiador do carro que leva dois vendedores pelo deserto dá problema e eles acabam tendo de pernoitar na estrada poeirenta e escura, num mundo pré-celulares.
O radiador não simplesmente esfria o motor, como alguém tonto feito eu poderia imaginar. O radiador é parte dum complexo sistema de refrigeração que impede que, por exemplo, seu carro vire uma bola de fogo.
Então, os caras estão no lugar mais quente do mundo, ao lado do carro mais quente do mundo.
Pronde vamos quando não vamos a lugar algum?
Pergunta, creio, ainda mais importante – ao menos para mim, que penso nela todos os dias: pronde vai uma história que não vai a lugar algum?
O que fazer dum nó narrativo que não se desfaz, não se pode alisar, em que não há ponta visível? (Quando eu era bem pequena, gritava Mã, desdá o nó? e ela desdava).
Entenda: minhas soluções são minhas. Só minhas. Vêm da minha experiência. Há mais de trinta anos, escrevo. Escrevendo, inventei macetes, encontrei saídas, aprendi a tirar coelhinhos da cartola – minha cartola, meus coelhinhos. Descobri quais gramáticas, dicionários, livros de referência e de apoio preciso usar, desenhei um ritual que me bota concentrada, descobri em qual posição fico mais confortável para escrever, de quando em quando fazer pausas, que músicas ouvir enquanto trabalho para calar as vozes da minha cabeça. Com o emprego de tentativa e erro fui sendo capaz de diferenciar bons de maus potenciais clientes e como calcular o prazo necessário para entregar tudo em dia. Há trinta anos dou aulas de escrita e preparo autores e seus originais (é sempre esse o pacote, há muito tempo não preparo mais só o livro – preparo o dono da escrita também) baseada no que funcionou e funciona para mim. Se minha, soluções ajudam alguém – e, bão, têm ajudado, posto que estou nisso há décadas – elas me ajudaram primeiro. Continuam ajudando.
Isso tudo para lhe dizer: o nó não está na história. Está em nós.
Pausa para você me chamar de coach de escrita. Já fui chamada de coisas piores, pode acreditar. Somos nós, os produtores do texto, que estamos com problemas para seguir com o trabalho. Somos nós, não a nossa história, que temos de lidar com os pepinos, descascar o abacaxi, evitar as cascas de banana – é todo um universo de hortifrúti, gente.
Como o dentista, a DR com o ex e a caixa de areia das gatas, o nó narrativo precisa ser enfrentado. Ah, sim, por nós.
Como não abordar um nó narrativo:
Um nó narrativo não se resolve gritando, tacando coisas longe e chilicando. Como eu sempre digo, chilicou, perde a vez e volta vinte casas. A única coisa que você consegue berrando e tendo um treco é enfartar o gato. Ah, não, não adianta beber e, por favor, não cite o Hemingway. Primeiro porque você não é o Hemingway (mesma coisa que digo para quem não quer usar maiúsculas: meu camaradinha, você não é o Saramago, se situe). O velho Ernesto não bebia para resolver nós narrativos, ele bebia porque era um viciado.
Como abordar um nó narrativo:
Um nó narrativo pode se resolver, sim, com alguma insistência. Ocá, muita insistência. Com o abandono da ilusão de que tudo o que escrevemos está pronto de primeira. Com o abandono também da certeza idiota de que o que você escreveu está perdido.
Encontre maneiras de enfrentar seu nó. Há recursos, pessoas para ajudá-lo (e não estou, necessariamente, falando de yours truly). Talvez uma mudança de abordagem: um novo narrador (primeira pessoa que se torna terceira ou vice-versa, ou narrador apático e de aperto de mão molenga transformado em narrador beijoqueiro e bonachão, só para citar algumas possibilidades), mudança no tempo verbal (levar a história para o passado, trazê-la para o presente – ainda que o odioso presente histórico, etc.) – são algumas ótimas sugestões. Há outras, muitas, procure. Livros podem ajudar, ler acerca do processo alheio pode ajudar, falar com um preparador uma vez por semana acerca de processos e meios e depois permitir que ele leia seu material e aponte caminhos certamente ajuda.
Mais do que isso e principalmente e para sempre: um nó narrativo pode ser desfeito com um montão de exercícios de escrita.
A ideia de que somos especiais e de que estamos acima do bem e do mal é fofa, mas completamente maluca. Como qualquer professor de educação física nos diria (a mim, principalmente): Você precisa se exercitar.
Não raro, o nó narrativo vem da nossa pouca capacidade de manobra. Como se fica mais ou menos razoável em erguer possibilidades, inventar saídas, descobrir para que lado uma história pode ir? Como encostar o pé na orelha? Com muita, muita prática. Escrevendo todos os dias. Ocá, quase todos os dias.
Desculpe-me se não tenho uma saída gloriosa, aí sim de coach da escrita (que pena que eu tenho), aquele velho e bom milagrinho que vemos por aí oferecido com desenvoltura e algum senso de picaretagem. Não existe solução mágica, para além dos coelhinhos na cartola, para a nossa escrita. Bom, em trinta e quatro anos, nunca tropecei numa. Nosso trabalho é duro, complicado, sacrificado e pegajoso. Frustrante, quase o tempo todo. Doem as costas de quem escreve sentado, os cotovelos de quem trabalha deitado de barriga para baixo, feito eu. Nossos olhos ficam sujos. Gastamos dinheiro num bocado de livros que depois vamos ler com sofreguidão e sacudindo a cabeça em busca de sei lá eu o quê.
Escrever é cansativo, é um serviço sujo. Custa muito café, um excelente preparador e nacos enormes do seu dia, da sua vida, dos seus momentos de lazer. Expõe você, seus sentimentos e motivação, ainda que esteja tudo camuflado sob pseudônimos, terceiras pessoas e apelidos amorosos que não significam coisa alguma para quem quer que seja (a não ser você). Insista o quanto puder, não abandone seu livro sem tentar absolutamente de tudo. Tente de novo no domingo, tente de novo na quinta-feira, elimine uma das personagens – como o Henfil fez em Henfil na China antes da Coca-Cola – que coisa genial, que livro incrível.
Fique na sela, fique firme. Um dia, há anos, curvada de dor, agredida e muito, muito só, quase larguei tudo. A minha boa amiga Simone Ramos me disse a única frase que dá conta dum escritor que quase desiste: Fabia, firme o corpo. A partir daí, firmei o corpo. Precisei reaprender um monte de coisas e listar tudo que eu sabia, mas achava que não. Perdi a chance de iluminar meu currículo lançando um livro com a sensacional Luciana Nepomuceno, porque minhas historinhas ali estavam patéticas de tão ruins, sofridinhas, pequenas. Continuei, no meu abençoado lugar de zero importância e zero motivo de cuidado, a trabalhar. Renasci maravilhosa, siliconadas e invencível? Claro que não, continuo aqui no canto escuro. Mas a parte mais importante da história toda é continuo aqui escrevendo.
Isto tudo posto, escreva a respeito do que vê, do que deseja, do que o encanta, do que ficou em você.
Escreva, por exemplo, acerca do mar, após ver a animação de dois caras muito diferentes, muito parecidos, vivendo num mundo que, prestes a mudar para sempre (e quando é que o mundo não muda para sempre, meu bem?), parece não querer levar nenhum dos dois consigo.
O mar está em todas as partes e para sempre.
Mesmo quando não está.
Mesmo quando tudo está perdido e nos afogamos no seco e a tristeza é um corpo d'água a ser vencido todos os dias, todos os dias.
O mar existe onde quisermos.
É o mistério do mundo, este mar perene, monstros marinhos para todo lado, peixes brilhantes invadindo nossa vida.
O mar nos alcança com suas cores, reflexos, formas, melodia, evocando o que se pode ou não experimentar, o novo, o velho, o cansaço e a petulância que só muita esperança ou um pai vivo nos permitem.
Navegamos por entre o mistério, o acaso, a força do desejo e da sugestão. Por entre o inescapável, aquilo que nos pegará entre seus dentes só para nos sacudir e sacudir, até que não sejamos mais do que um corpo.
O mar permanece por todos os séculos e períodos e eras e éons e estará aqui muito tempo após termos virado conchas, águas-vivas, polvos, estrelas-do-mar, seixos, cavalos-marinhos, anêmonas.
O mar, imorredouro, sabemos, nunca termina. Está conosco e em nós.
Este é um mundo de coisas de fim indefinido e aberto e eterno.
Feito nós.
Feito o mar.
...
Obrigada por estar aqui, até domingo.
Amor,
Fal.
A série:
Love, Death + Robots (2019)
O episódio: Fish Night, roteiro de Philip Gelatt, baseado numa história de Joe Lansdale, dirigido por Damian Nenow
…
Os livros:
Henfil na China antes da Coca-Cola (1981), do Henfil, editora Codecri. Melhor indicação de livro que eu já te dei na vida, meu bem.
Sobre a escrita: a arte em memórias (2015), do Stephen King, tradução do Michel Teixeira, editora Suma.
Como escrever bem: o clássico manual americano de escrita jornalística e de não ficção (2021), de William Zinsser, tradução do Bernardo Ajzenberg, editora Fósforo.
O mundo da escrita: como a literatura transformou a civilização (2019), do Martin Puchner, tradução do Pedro Maia Soares, editora Companhia das Letras.
Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura (2022), do Philip Roth, tradução do Jorio Dauster, editora Companhia das Letras
Escritos sobre mito e linguagem (2013), do Waltão Benjamin, tradução da Susana Kampff Lages e do Ernani Chaves, editora 34.
O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo (2022), de Irene Vallejo, tradução do Ari Roitman e da Paulina Wacht, editora Intrínseca.
Eu nunca desisti de algum livrinho nosso
Nossa, Andrea, amei seu texto! Salvei para ler nos momentos de dificuldade rsrsrrs que não são poucos! 🥲