Julia sonhou, por longas semanas, com aquele Natal. Ele se materializaria no portão dela, mochila nas costas. Vou ficar, informaria, enquanto ela destrancava os quatro cadeados do portão, trêmula, sem saber o que fazer — para além de, evidentemente, virar todas as chaves do mundo. O cão pisoteando seus pés e choramingando, a moça de guarda-chuva azul-marinho que subia a rua parecendo meio espantada e ela ali e aquele maldito portão complicado e o mundo acabando e começando. Uma mochila.
Filmes demais, roliúde demais, vinho demais, falta de consciência e, sabemos, dum espelho.
Mas Julia sonhou com isso e não se envergonha. Um pouquinho, talvez.
Fal, esta indeterminação do enredo é muito instigante. Vou contar mais um tiquinho.
Júlia desejou tanto estar bem, estar pronta para recebê-lo! E ele chegou. Ele permanecerá. Mas, como será?
Ele vem de Minas e trouxe pequi. Farão, juntos, arroz com pequi. Sua cozinha se inundará de cheiro e sabor.
- Nossa, eu pensei que nunca mais roeria, junto contigo, nossa dúzia de pequi!
- Doze são os meses do ano. Doze são os...
- Pode parar! Hoje eu só quero saber de um beijo, aquele que você me prometeu trazer, junto com doce de leite. Trouxe o doce?
- Trouxe! Será nossa sobremesa...
E foi sobre doces e receitas; sobre viagens e outros sonhos que tanto conversaram até que o Ano Novo chegou.
A mochila ainda dorme, esquecida, num canto do guarda-roupa.
Júlia sabe que ele ficou por querer. Agora grávida, deseja doce de goiabada cascão feita no tacho! A tia dele, lá de Minas, já enviou a encomenda... A Páscoa há de ser doce.
Do beijo lambuzado de doce de leite, no dia de Natal, eles não mais se esqueceriam.
"aquele maldito portão complicado" - fiquei aqui pensando que quando o sonho tão longamente sonhado se anuncia a gente se atrapalha é nas miudezas, no sem-jeito de receber