Vim, porque, às vezes, é isso que faço: venho para cá. E, apesar da casa ficar num bairro de São Paulo, finjo que estou no interior, num lugar inalcançável.
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As cachorras são mamutes amistosos e me recebem como se eu nunca tivesse saído. Gentis. Tão gentis.
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Vim visitar meu amigo, C. Ele joga minha mala sobre uma arca enorme que mora na sala e me abraça, parecendo bem mais feliz do que as cachorras. Faz perguntas gerais, faz perguntas específicas, bagunça meu cabelo, como se meu cabelo precisasse de ajuda nesse particular.
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O ar cheira a carne assada.
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C. fez a pasta do macarrão, o molho do zero, assou a carne com cerveja, escolheu os vinhos, preparou o creme de abacate. Ele comprou flores. Tudo, absolutamente tudo, para mim. Porque eu viria. Porque eu gosto. Quase me esqueço de como é ser tratada assim. Adoro ser tratada assim.
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A casa é uma caixa de vidro e minhas piadas sobre lobisomens e o Tarado da Machadinha invadindo a sala para nos pegar fazem sucesso todas as vezes que estou aqui. No meio do jantar, ele me pede: Fala do Tarado da Machadinha. Tenho traçadas as rotas por onde os inimigos entrariam e descrevo tudo com bastante realismo. Ele ri, uma risada grave e rica e diz que os vidros são temperados, nada os atravessa. E eu pergunto: E um Tarado-da-Machadinha-Lobisomem-e-Zumbi?. Gargalhadas. Digo que a pessoa deve estar preparada para tudo e C. concorda e abre outra garrafa de vinho.
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Às vezes, E., a neta dele, está aqui, e ela gosta das histórias de um indiozinho que meu pai nos contava.
Meu velho pai mudava discretamente a letra inicial do nome do herói das nossas histórias, um indiozinho que morava numa tribo muito louca — ah, as histórias do meu velho e saudoso pai —, o que fazia as crianças Vitiello guincharem, excitadas, porque, né, pelo amor de Deus, o nome do menino mudava a cada frase e isso nos enlouquecia.
Crianças são crianças e a pequenina E. fica alucinada com as histórias de um indiozinho cujo nome nunca é o mesmo, que vive suas aventuras na selva amazônica (inclusive no lado venezuelano), no boi bumbá, no Pantanal, nos pampas gaúchos, em Londres e dentro do museu do Ipiranga (Cativo meu público contando sempre a mesma história em cenários diferentes. Não presto).
A mãe de E., que costuma estar com ela, ouve as histórias também mesmerizada. Ela tem a minha idade, mas vibra e torce e joga almofadas para cima quando o menininho derrota os inimigos e chorou fazendo com o mesmo bico que a filha, quando nosso herói descobriu o cadáver de uma onça-pintada no meio da floresta, vítima de malvados agentes da UDR, homens sem lei e sem escrúpulos.
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Mas hoje E. e sua mãe não estão aqui. Estamos sós e o jantar é quase silencioso. Não tão silencioso que fique esquisito, mas ninguém precisa conversar para criar uma falso clima amistoso. O clima é amistoso. E terno. E eu, que raramente aprecio a companhia de que quer que seja, penso como é bom não estar sozinha.
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C. molha a ponta da cigarrilha no vinho de framboesa (nem pergunte, é Deus no formato de vamos deixar a Fal balão) antes de tragar. É um gesto que faz desmaiar de tão charmoso e ele ainda está de calças creme, alpargatas, uma blusa verde água de matar. Parece o modelo de um catálogo. E articulado. E falando bem. E baixinho. Sou este ser terrivelmente comum e vão, cabelo sempre bagunçado, sobrancelhas sempre mais ou menos, unhas lascadas segundos depois de serem feitas, comentários errados sobre coisas mais erradas ainda, gestos impensados e julgamentos tortos, pia em eterna bagunça, roupas empilhadas por dobrar. Mas me dou, mistério, com esse pessoal de dentes lindos, cabelo assentado na cabeça, óculos de armação chique, vozes bem moduladas, casas de revista, vinho de framboesa feito num lugarzinho da Provença, simples, mas adorável.
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Fico sentada com as pernas enroladas debaixo de mim no sofá enorme. Dá para ouvir o vento. Às vezes, uma das cachorras resmunga dormindo. Viro a página do meu livro, ou pego meu caderno de anotações e escrevo uma coisinha. C. vira a página do livro dele. Ele suspira. A cachorra suspira. O CD acaba, daí vem um barulhinho e outro CD começa a tocar. Mahler. Na casa do meu amigo, quase sempre toca Mahler, outro lance que faz a coisa toda parecer um anúncio de cartão de crédito (não o cartão de parcelar o sofá, não, mas aquele que vai nos levar para o lugarzinho simples, mas adorável, é claro).
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Este é um mundo de definições e somos, intrinsecamente, não definidos, meu amigo e eu.
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Mahler é meio dramático para mim, para falar a verdade. Prefiro uma coisinha mais… plana. Pacífica. Sem tantos picos de paixão. Quando quero explosões, vou de Tchaikovsky.
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O corpo do meu amigo é quente. Mas não muito. Morno. E ele respira devagar. Bem, bem devagar. Às vezes, penso que parou de respirar, mas não. Ele inspira e expira e, agora que o CD do Mahler também foi dormir, ouço a respiração do meu amigo mais alta do que o vento. Mais alta do que tudo. Quase posso acreditar que meu amigo calmo, sereno e profundamente adormecido é a única coisa que existe. Aqui. No mundo. Em todo o universo. A cama de lençóis brancos, travesseiros altos, as folhas das árvores que se agitam e me dão vontade de chorar.
Mas não choro.
Respiro fundo também, como aprendi a respirar tão novinha: pela barriga, em quatro tempos. Respiro fundo, de olhos abertos, olhando para as veias na testa do meu amigo. Desejo não ser, não estar. Mas sou e estou, tão irreal, tão sólida, tão efêmera, tão permanente, tão sem significado e tão necessária quanto a respiração do meu amigo. Quanto a minha respiração.
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É madrugada e a janela aberta traz cheiro de mel — o que pode ser uma alucinação causada pela medicação para a dor de ouvido. C. acorda. Dor?, pergunta baixinho. Sim, eu sinto dor, e meu amigo coloca a mão dele em concha sobre meu ouvido. A dor não passa, mas a sensação é boa e familiar e a pele dele tem cheiro de cravo.
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Finalmente durmo e tenho um sonho sensacional com a biblioteca do romance O Nome da Rosa, meu sonho recorrente, quase sempre angustiado. Não essa noite. Livros e mais livros empilhados, mas a visão deles não me dá aflição. Fico feliz ao vê-los. Olho as fileiras sem fim e penso que coisa bem boa, li todos, sei o que fazer. Nunca sei o que fazer na vida, no mundo real e com as pessoas, e é muito tranquilizante saber o que fazer, saber exatamente o que fazer, pelo menos no meu sonho.
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A manhã é fresca, porque a serra é mais fresca do que o resto da cidade. C. tem gestos lentos. Ele fala tão devagar quanto respira. É uma dessas pessoas que não me deixam agitada e nem com vontade de sair correndo. C. bate as cinzas do cigarro, dá outro gole no café. Balança a cabeça, desgostoso com alguma coisa que leu no jornal. Quando vê que estou olhando, ergue ambas as sobrancelhas de um jeito que me faz rir. E volta a ler em silêncio. Ele não discursa sobre o que está lendo, adoro isso. Ele não vê futebol e nem televisão de espécie alguma, o que acho tranquilizador. Por outro lado, C. nunca viu The West Wing, mas quem é que pode levar uma existência livre de defeitos, você há de convir.
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É hora de ir embora e C. pede que eu volte logo.
É hora de ir embora e digo que volto logo.
Não sei quando, ele não sabe e, apesar de planos para o feriado, não há planos para o feriado. Porque somos indefinidos num mundo cheio das mais rígidas definições e gostamos de ser assim.
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Já em casa, envio a ele o link dos drops da minha querida, querida Maria. A resposta é uma gargalhado por áudio e outra por escrito. Ele entendeu.
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Minhas unhas vermelhas ainda me assustam. Olho para as minhas mãos e penso que são de outra pessoa.
Viajei bonito, quase esqueci em que mundo estou, pude ver os dois como um só no mundo
Encantador: o momento, o jeito de contar, o silêncio amistoso e terno. Toda a atmosfera de sossego e aconchego.